Acordamos cedo em Havana no segundo dia, afinal iríamos começar realmente a viagem. O dia anterior, quando chegamos, havia sido o aquecimento, aguçou nossa curiosidade e aumentou ainda mais a ansiedade de mergulhar na cultura e história cubana.
Combinamos com a Yusi, nossa anfitriã, que tomaríamos café às 8am para então pegar o taxi compartilhado às 8h30min tranquilamente. Acordamos e nenhum sinal dela, muito menos do café. O táxi também não aparecia e já começamos a desconfiar do comprometimento cubano, erroneamente.
Após esperar até 8h40min, combinei com a Ana que iria procurar um outro táxi pelas ruas. Perguntei aos vizinhos em frente que riram e disseram para esperar que ele chegaria, provavelmente ainda estava encontrando as outras pessoas. Nesse meio tempo, encontramos um lugar ao lado da casa para tomar café. Longe de ser turístico, o cardápio era pão com salsicha, presunto e catchup! Encaramos mesmo assim pois a viagem seria longa e, falando em viagem, nosso táxi finalmente havia chegado – 35CUCs por pessoa até Trinidad.
Foto Início do post: vista do museu da “Lucha Contra Bandidos”.
Ainda comendo, saímos para organizar as malas e a Yusi apareceu como num passe de mágica, pedindo desculpas. Quando regressamos de Trinidad, ela nos explicou que havia saído com conhecidos em uma ocasião especial na noite anterior e acabou não acordando. Esses cubanos, vou te contar, balada na segunda-feira!
Tudo resolvido, subimos numa SUV da década de 50, cheirando tinner porém bem conservada e espaçosa, partindo para Trinidad. Um casal suíço e uma mulher nos acompanhavam.
Ao longo do caminho, a estrada era boa, porém, com pouca sinalização. Pista dupla com muitas faixas logo após deixar Havana e diminuindo conforme nos distanciávamos em direção ao interior. Os motoristas cubanos foram sempre bastante tranquilos e praticavam a boa educação no trânsito, diferentemente daqueles com quem tive a oportunidade de conhecer andando pela Bolívia e Perú.
Outra percepção foi a baixíssima densidade populacional ao longo da estrada, campos verdes ora mostravam algumas cabeças de gado, ora plantações de cana de açúcar. Vimos também pessoas pedindo carona e vendedores de queijo.Essas pessoas pedindo carona não eram mochileiros se aventurando e sim o reflexo da precariedade do sistema de transporte inter-municipal.
Para fazer uma viagem inter-municipal há 3 opções:
1) entrar na fila para utilizar o sistema oficial de transporte público, um caminhão com cadeiras – pau de arara, por vezes sem garantia de horário; 2) juntar dinheiro para arcar com um táxi compartilhado, que é muito caro para um cidadão cubano pagar – U$30 – o salário mínimo em Cuba é U$10 e 3) pedir carona.
Já os vendedores de queijo são produtores de leite tentando incrementar sua renda, que é muito baixa. Todos os agricultures e pecuaristas obrigatoriamente devem vender 90% de sua produção ao governo, dessa forma, deixo para vocês tirarem as próprias conclusões da manipulação de preços frequentemente em seu desfavor. Nesse cenário, entra em cena pela primeira vez o que apelidamos de “jeitinho cubano”, artifício da população para poder sobreviver dignamente. Os produtores de leite declaram menos do que produzem e com o restante produzem queijo, vendendo ilegalmente nas estradas para seus conterrâneos e turistas.
Continuando a viagem, passamos pela cidade de Cienfuegos, onde o casal que nos acompanhava ficou. Cienfuegos é conhecida como “La Perla del Sur”, atrai turistas por sua arquitetura francesa, repleta de casarões neoclássicos que hoje fazem parte do Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, além de suas belas praias. O nosso planejamento não incluía ficar em Cienfuegos porém, se você tiver mais tempo disponível, é uma cidade que com certeza vale a pena passar um dia.
Seguimos agora por uma estrada simples, margeando a costa sul, até chegar em Trinidad, a terceira vila fundada em Cuba pelos espanhóis, em 1514.A cidade tem um charme histórico incrível, que remete diretamente aos séculos XVI e XVII. Também tombada pela UNESCO, é considerada uma das cidades do período colonial mais bem preservadas no continente americano. Foi um engenho de açúcar até o século XIX e posteriormente se tornou um centro turístico para quem deseja passar por uma imersão histórica e cultural.
Estávamos um pouco cansados da viagem de 4h naquela barca dos anos 50 quando chegamos na nossa próxima casinha, da Sra. Mariela. A cidade já oferecia um acolhimento porém nos sentimos literalmente abraçados quando a Mariela nos recebeu. Ela tinha uma voz suave e uma calma no modo de falar que nos trouxe uma paz instantânea e, além de todo esse bem estar, seu marido ainda preparou um sorvete de boas-vindas.
A casa era muito espaçosa e fresca, fazia muito calor e mesmo assim nos sentimos muito confortáveis lá. Como muitas casas em Trinidad, possuía um terraço para quem quisesse contemplar a calma e a paisagem da cidade, circundada por uma pequena cordilheira de montanhas.
Montamos acampamento e então saímos para conhecer um pouco da cidadela. O centro histórico é delimitado por portões de metal em cada uma das ruas de acesso, com a finalidade de filtrar o movimento de automóveis e tornando a caminhada ainda mais tranquila.
As ruas centrais são todas de pedra e os casarões neoclássicos os mais bem conservados que tínhamos visto até o momento em Cuba. A paleta de cores em harmonia com ruas estreitas lembrava um pouco Paraty, no Rio de Janeiro. Vimos muitas casas particulares para alugar, confirmando o papel relevante do turismo para a riqueza da cidade e um motivador para a sua conservação por parte do governo e moradores.
Outra característica marcante foi a musicalidade da cidade. Eramos atraídos pela música a cada passo e virada de esquina, com a presença maciça de músicos na rua e dentro dos restaurantes e bares, um prato cheio para quem deseja conhecer a verdadeira salsa cubana. Nem em Havana tivemos uma sorte tão grande de músicos, que se concentravam mais nos ambientes internos.Paramos para almoçar num restaurante próximo da escadaria da catedral da Santíssima Trinidad, que acabou se tornando o nosso preferido na cidade. Chamado 1851, era um sobrado rústico e bonito, com ótimo custo-benefício.
Saindo de lá, fizemos o tour por uma feira de artesanato na rua, suas praças, o museu-mirante da “Lucha Contra Bandidos” e para finalizar, tomamos o drink Canchanchara no lugar de mesmo nome, ao som de salsa. Essa bebida é famosa lá, uma caipirinha onde o mel substitui o nosso açúcar, feita com aguardente mesmo. No museu, observamos alguns quadros dos anos iniciais da cidade, além de armamentos de época. O mirante, por sua vez, proporciona uma excelente vista da cidade com seus telhados alaranjados e o mar no horizonte.
Um fato engraçado: ao sair do museu demos de frente com uma mulher cubana, que encarando a Ana disse energicamente: “tu mama está te procurando!”. A outra moça na recepção disse que a Ana era uma turista e que a outra havia se confundido. Rimos todos juntos enquanto saíamos, estava comprovado que a Ana tinha um quê de caribenha! 🙂
Voltamos para a casa de Mariela para então sair à noite com mais pique, no caminho, fomos apreciando os casarões e tirando fotos da cidade. Trinidad, mesmo pequena, possui muitas opções de restaurantes e bares. Uma dica para os mais bohêmios: cheguem mais cedo pois apenas a Casa de la Música avança a madrugada, e foi para lá que fomos, após comer a nossa primeira e deliciosa Lagosta no 1851 para êxtase da Ana.
A Casa de La Música é um local obrigatório para se visitar. É, na verdade, uma escadaria ao lado da catedral onde existe um palco e mais 3 bares ao seu redor, todos patrocinadores da boa música. Durante o dia é um local para se sentar e descansar após rodar pelas ruas sob o sol forte. À noite, eles fecham os primeiros degraus e cobram 2 CUCs para curtir o show de salsa mais tradicional. Ficamos lá até o fim do espetáculo, apreciando uns mojitos, para então voltar para casa.
A Mariela nos explicou que existem 2 tipos de salsa ali em Trinidad, a mais tradicional, romântica e conhecida internacionalmente e uma variante com influências da música e religiões africanas, conjunto esse conhecido como Santería. Esta última pode ser vista num lugar chamado Congos Reales próximo à catedral, um ritmo intenso e rápido, contagiante do início ao fim.
No caminho de volta, já de madrugada, uma curiosidade que observamos em outros momentos em Cuba. As escolas mais urbanas sempre dispunham uma sala de aula virada para a rua, ou seja, da calçada você praticamente poderia assistir à aula, observando pela janela grande atrás da última fila de carteiras. Essa escola em particular tinha a luz da sala de aula acesa e a janela aberta. Se por trás dessa característica existia algum marketing ou não, era de fato diferente.
Aproveitando e falando um pouco sobre educação, que juntamente com a saúde, são as áreas de maior orgulho e propaganda do governo, universais na ilha. De fato, toda a população tem acesso a esses serviços, mas a dúvida recai sobre a qualidade.
Indiscutivelmente Cuba é hoje um país com uma economia pobre, restrita, e que há apenas 3 anos aprovou medidas para permitir atividades autônomas e de propriedade privada, dando ao povo a liberdade de buscar aumento de sua riqueza. Também é sabido que um sistema robusto de educação tem custos inerentes para sua manutenção eficaz, sem contar os investimentos incrementais para manter esse sistema atualizado. Assim, levantei a seguinte questão: como um país pobre consegue equacionar essas variáveis contrastantes?
Na nossa volta à Havana, Jorge nos trouxe clareza e disse que a educação era boa, porém a infra-estrutura estava ultrapassada e os investimentos eram praticamente nulos desde a queda da URSS. Além disso, o ensino é tendencioso e ideologicamente pró-regime, condicionando desde cedo os alunos a aceitarem de bom grado o status quo. Quando retornamos à Havana, caminhando em volta da universidade observamos diversas salas do prédio da Faculdade de Física sem janelas, abandonadas, o que com certeza é um reflexo da falta de investimentos.
Minha opinião pessoal é embasada no sistema de ensino dos países que lideram um dos rankings mundiais de educação (PISA): Coréia do Sul e Cingapura. O ensino base é gratuíto e de qualidade e as aptidões e habilidades diferentes de cada um são levadas em consideração desde o início – professores e escolas foram muito bem aparelhados no início dessa revolução do ensino. Cuba iniciou o processo corretamente ao universalizar o ensino base gratuito, porém, a economia deve caminhar e evoluir junto para que os investimentos não parem, os professores sejam cada vez mais capacitados e as escolas mais estruturadas. Finalmente e não menos importante, o ensino não pode ser polarizado, todo tipo de tema deve ser trazido à mesa para o debate, com garantia de liberdade de opinião e ideologia individual, que sempre devem ser respeitadas.
Voltando à Trinidad…
No segundo e último dia em Trinidad, fomos até a igreja San Francisco de Paula, a praça da Assembléia Municipal, que tem wifi, e fizemos uma longa caminhada pela ruas periféricas. Passamos pelas ruínas da igreja Santa Ana e fomos até a parte alta da cidade, passando por bares, ateliês e casas de artesanato.
Também vimos alguns mercados locais e restaurantes mais turísticos, tudo isso temperado com um ar tranquilo sob o sol ardente. Caminhamos então até um outro mirante, o Palacio de Cantero – 2 CUCs a entrada, uma casa colonial transformada em museu. Finalmente paramos para almoçar no restaurante chamado Cohiba, também muito bom, novamente sob o som de salsa ao vivo.Para finalizar nosso passeio por Trinidad, já que ficaríamos tranquilamente mais dias se fosse possível, tomamos um café plantado na região num lugar bem pequeno que não lembro o nome, na rua Francisco Javier.
A filha de Mariela, tão simpática e solícita quanto a mãe, chamou um táxi para voltarmos à Havana e, incrivelmente, era um carro novo e nos cobrou 60CUCs pela viagem, tinha ar condicionado e só voltamos nós dois, o que foi ótimo pois conseguimos descansar mais do que na ida.
Espero que tenham gostado dessa segunda parte do relato – próxima parada, Havana!