Sabem quando de repente um desafio embarca no seu imaginário e passa a te acompanhar diariamente até que tenha sido atingido? Foi após ter chegado ao Pico da Bandeira, contagiado pela famosa doença dos montanhistas, que a ideia de subir o Pico Agulhas Negras surgiu. A crise de abstinência das montanhas despontava.
O Agulhas se encontra no Parque Nacional do Itatiaia, é o mais alto pico do estado do Rio de Janeiro e o quinto mais alto do Brasil, com 2791m. Como vocês verão adiante, sua elevação e irregularidade são as principais características e, por esse motivo, a dificuldade em vencer suas veias de pedra ao longo da subida é exponencial.
O Parna Itatiaia, como outros parques desse calibre ao redor do Brasil, oferece diversas atividades como tracking, travessias, escalada de níveis diversos e, no caso do Agulhas, escalaminhada. Para verificar as opçôes, visite o site oficial.
Me acompanharam nessa aventura a Ana Paula, Pedro, Mariana e Vinicius, grandes companhias para desafios à altura.
Planejamento inicial
Boa parte das informações está descrita com detalhes no próprio site do parque, na área “Guia do visitante”. O parque divide-se de acordo com as suas atrações, distribuídas na Parte Alta, Parte Baixa e nas Travessias. Darei foco na parte Alta, onde se encontra o Agulhas, descrevendo todos os passos que seguimos para chegar ao topo com sucesso e também dar dicas do que aprendemos na raça.
Primeiramente é necessário entrar em contato com um guia experiente e que garanta a segurança do grupo, essencial durante a subida. No site do parque há uma lista com sugestões de guias cadastrados e confiáveis.
Após entrar em contato com alguns deles, acabamos fechando com o Rodrigo Mantiqueirista, celular: (24) 99902-9025, site: LINK, que foi extremamente profissional, um profundo conhecedor da região e apaixonado pelas montanhas.
O Rodrigo, além de tomar decisões conscientes, trazendo mais tranquilidade para o grupo nos momentos críticos, providenciou todos os equipamentos necessários (capacete, mosquetões, cordas principais e auxiliares). Só para vocês entenderem a importância de estar com um guia profissional, no caminho encontramos com outros grupos que não usavam capacetes, além de pedirem emprestado equipamentos mais básicos, como cordas auxiliares.
Além do guia, existe um Termo de Responsabilidade que deverá ser preenchido antes de entrar no parque. O modelo está disponível nesse link, caso queiram ter uma ideia das regras e direitos que deverão ser abdicados em prol do passeio radical.
Finalmente, vale lembrar que há duas opções de caminhos ao Pico, o tradicional, com escalaminhada e trechos que requerem utilização de cordas e o alternativo, que segue por desfiladeiros, um pouco mais fácil tecnicamente porém mais perigoso. Fizemos o tradicional.
Como Chegar
Saindo de São Paulo, pegar a BR-116 (Rodovia Dutra) até a saída para a SP-054. Esta se unirá a BR-354, que seguirá até a Garganta do Registro. Na Garganta, vira-se à direita, onde começará a subida pelos arredores do parque por uma estrada de terra e pedras até o Posto Marcão.
Entrada no Parque
Não há reservas para entrada no parque e o limite é de 80 pessoas por dia, preenchido pela ordem de chegada. A portaria da Parte Alta – Posto Marcão, abre às 7h da manhã, porém o pessoal começa a chegar entre 6-6h30. Por isso, é altamente recomendável chegar adiantado para garantir a entrada.
Tivemos a ajuda do Rodrigo e sua disposição em chegar cedo, pois não conseguimos atender o horário. Quando chegamos, ele já havia feito o preenchimento preliminar do Termo de Responsabilidade, adiantando e garantindo nossa entrada.
O preço do ingresso geral é de R$33 porém há benefícios e exceções, também descritos no site.
Hospedagem
Sobre a hospedagem, há muitas possibilidades e informações a serem levadas em conta. A primeira e mais aventureira é de ficar dentro do próprio parque. As opções são o Abrigo Rebouças e o Camping, ambos com limite de 20 vagas por dia, sendo que 16 podem ser reservadas antecipadamente online, com no mínimo 1 mês de antecedência. Tentamos fazer as reservas para o Abrigo mas não foi possível devido à alta procura. Como ficaríamos apenas durante o fim de semana, as vagas já eram consumidas por quem havia feito a reserva de 1 semana inteira, incluindo nosso final de semana. De quaquer forma, vale a tentativa. A reserva era feita por um formulário no site do parque mas agora é feita diretamente pelo e-mail: RESERVAS.PNI@ICMBIO.GOV.BR
Ainda próximo ao parque, existem algumas pousadas e campings, como a Pousada dos Lobos e Pousada dos Lírios. O acesso para essas pousadas é por estrada de terra e a entrada fica no ponto intermediário entre a Garganta do Registro e o Posto Marcão, conhecido como Brejo da Lapa.
É muito importante mencionar que o trecho entre a Garganta e o Posto é bastante sinuoso e possui alguns buracos, mesmo sendo uma estrada de terra com pedras. O tempo que é mostrado no Google é de 34min porém é na verdade pode chegar a 1h.
Já o trecho de terra até as pousadas é extremamente acidentado e escorregadio, em alguns momentos tivemos que retornar com o carro para então passar rapidamente, evitando derrapar ou até atolar. Entre o Brejo da Lapa e a Pousada dos Lírios demoramos em torno de 30min.
Por fim, há inúmeras pousadas nas cidades ao redor do parque, que podem ser vistas nessa lista no site da prefeitura de Itatiaia.
A escolha do local de hospedagem e posterior planejamento de todo o percurso até o Posto Marcão é muito importante. Como mencionado anteriormente, é importante chegar com antecedência, ao menos antes das 6h30min. Como referência, abaixo seguem os tempos entre as cidades vizinhas e o Posto Marcão (Posto 3). Lembrando que esse tempo pode aumentar de acordo com as condições da estrada de pedra até o Posto.
A nossa subida foi feita em Julho, para evitar períodos de chuva e deslizamento, frequentes na região.
Chegando até a Pousada dos Lírios
Nosso planejamento foi um tanto agressivo. Saindo de São Paulo na Sexta-Feira à noite, dormiríamos no camping da Pousada dos Lírios e finalmente subiríamos o Pico Agulhas Negras no Sábado.
Tudo foi de acordo com o planejado, com exceção do tempo de viagem até a Pousada, do frio que fazia na nossa chegada e do café quente (ou a ausência dele) ao acordar.
Nos encontramos em São Paulo e caímos na rodovia aproximadamente às 22h. O percurso inicial na Dutra foi traquilo, porém, na primeira saída rumo à Garganta do registro, a pista era tão sinuosa que dava a impressão de estar andando em círculos. O trecho até o Brejo da Lapa já era mais íngrime e nos tomou mais tempo, quando chegamos na bifurcação para a pousada já eram 2h da manhã. A ansiedade e o frio já entravam em cena e a Pousada dos Lírios parecia cada vez mais distante a cada buraco e pedra que superávamos na estradinha de terra serpenteando no breu noturno.
Chegamos finalmente na Pousada e os ponteiros do relógio se aproximavam das 3h da madrugada. Como até os morcegos já deviam estar na cama, não encontramos ninguém para dar informações ou fazer o check-in. Na escuridão, declaramos uma área aberta como a mais propícia para montar as barracas e dormir pelo pouco tempo que restava. O frio estava cortante e a temperatura com certeza estava abaixo dos 5°C. Nas palavras da Ana:
O frio do Agulhas foi o maior que eu já senti na vida. Fisicamente congelou meu pé, só voltei a sentir depois que começamos a subida. Psicologicamente era uma sensação de desesperança, como se nunca mais eu fosse sentir o quentinho de novo.
Ana Paula
A tentativa de dormir ou mesmo de um breve descanso foi louvável mas não tivemos o sucesso esperado, o frio expelia qualquer conforto e, num piscar de olhos, já estava na hora que levantar e seguir para o Posto Marcão.Antes disso, mais uma tentativa de trazer o calor aos nossos pobres corpos. Utilizando um pequeno fogareiro que eu havia feito com muito esmero, a água não ferveu e o nível de café no sangue continuava zero. Após o aperto, estávamos convencidos que a melhor opção teria sido de dormir dentro dos carros, apertados, porém aquecidos.
Decidimos priorizar o Posto e tomar café lá no estacionamento, após garantir nossa entrada. Saímos da Pousada pouco depois das 6h e, após muitas derrapagens na subida da estradinha, chegamos perto das 7h da manhã, encarando uma fila de quase 10 carros. Como comentei acima, o Guia Rodrigo havia chegado mais cedo e conseguimos entrar após um breve momento de espera.
Assinamos o Termo de Responsabilidade na entrada do Posto e estacionamos na área determinada, já dentro da parte Alta do parque. Ali mesmo tomamos o tão aguardado café da manhã e, em companhia dos tímidos raios de sol, o cansaço deu lugar ao espírito aventureiro.
Nos reunimos com mais outras 4 pessoas, que completaram o grupo.
Subindo até o Pico Agulhas Negras – O Desafio
Começamos uma caminhada tranquila em uma estrada de terra larga e plana, que nos levou do estacionamento até o Abrigo. Uma breve parada para ir ao banheiro, continuamos por então por uma trilha estreita e vegetação alta, em meio ao planalto do parque. Passamos pelo camping e imaginamos o frio que havia feito ali naquela madrugada, um lugar mais alto e mais aberto do que a nossa querida e gélida Pousada.
Desdo início da trilha já avistávamos o imponente Agulhas, subindo como uma parede encravada de agulhas cinzas petrificadas até o céu. É impossível descrever em palavras a impressão gerada em cada um ao observar o Pico e, mesmo estando ali ao vivo, só compreendemos o desafio na volta, olhando para trás e relembrando quão diminutos eramos ao longo da subida.
Paramos brevemente em um riacho para pegar mais água e descansar um pouco, seguindo novamente por uma área mais rochosa, com uma vegetação progressivamente mais rala. Esse trecho já ficava mais íngreme e exigia um pouco mais de resistência. Em alguns momentos, a caminhada por entre as veias da rocha precisava ser feita engatinhando, garantindo que o centro de gravidade forçasse nossos corpos contra a rocha em caso de desequilíbrio. Além disso, utilizar as mãos também ajudava bastante.
Chegamos ao primeiro trecho onde precisaríamos de corda, uma parede rochosa de aproximadamente 7m de altura.
Tem corda, brother!
Pedro
Brecha.
Vinicius
Pedrão e o Vinicius ficaram impressionados e me questionaram sobre as cordas, já que nas nos registros de nossas conversas só constava o termo “escalaminhada”. Depois tiraram de letra.
Esse ponto é um divisor de águas para quem quer encarar o Agulhas. Se você nunca fez rapel, poderá ter dificuldades em subir, principalmente por ainda não ter familiaridade com a postura de quase 90°do corpo em relação à rocha, gerando uma estranha sensação de insegurança, e também pela inicial falta de confiança no equipamento, essencial para deixar o corpo menos tensionado e usar a força para o que é realmente necessário. Em relatos que li anteriormente, a desistência ocorre em grande parte pela dificuldade de passar esse ponto. Vestimos as cadeirinhas e nos preparamos para a ação. Aos poucos, o pessoal foi subindo, travados pela corda de segurança manejada pelo Rodrigo e usando uma corda auxiliar com nós. Com ou sem ajuda, todos tiveram sucesso, prontos para continuar a encarar os desafios da trilha.
Desse ponto em diante, continuamos a andar entre as veias das pedras – importante um calçado com boa aderência – e então a praticamente escalar trechos sobre as “agulhas”, bastante íngremes. Paramos por mais algumas vezes para descansar e após um trecho de quase 2h passamos por uma fenda e chegamos a mais um patamar de rochas, já próximo ao Pico. Envolto de penhascos, esse trecho é um dos mais difíceis, com o visual contribuindo para a sensação de perigo, além de ter que passar pequenos trechos sem cordas.
O Pedro buscou coragem no fundo do seu espírito e respirou fundo nesse momento. Um a um fomos subindo, primeiro um lance pequeno e então outro mais longo, ambos utilizando cordas. Por fim, um mezanino beirando a rocha, sem cordas, em frente à um penhasco. Sangue frio nesse momento e muita coragem.
Finalmente, chegamos ao Pico! Todos muito felizes e exaustos, primeiro em silêncio, contemplando o visual, para então tecer comentários dos desafios e dificuldades durante a subida.
A paisagem é sensacional e a formação rochosa irregular do pico lembra a de um planeta longínquo. Em relação ao Pico da Bandeira, a sensação de altura é mais gritante pois o Agulhas tem o formato literal de um muro rochoso, onde o ganho de elevação por distância percorrida horizontalmente é bem maior.
Para quem quisesse assinar o famoso livro, o Rodrigo ainda seguiria por mais um lance, primeiro descendo um paredão de 7 metros e então subindo o pico do livro, apenas com a corda de segurança e mãos na pedra. Fui com mais duas pessoas do grupo e foi um esforço gigante, não sei como tive energia para chegar lá e lembro que fiquei com as pernas bambas ao conseguir, uma mistura de adrenalina e esforço físico.Assinei o livro com o nome de todos do grupo, afinal, foram muito parceiros superando as dificuldades em igual medida para finalmente comemorar a vitória juntos.
Chegada a hora de comer, descansar um pouco e iniciar a descida, que até o primeiro patamar foi tão difícil quanto subir. Tinham outros grupos e precisamos aguardar, o que foi bom para contemplar um pouco mais os desfiladeiros e a paz ali no topo, além de tomar fôlego e mais coragem.
Seguimos com cautela durante a descida desse trecho, passando a ter cuidado com os joelhos devido aos inúmeros impactos.
Os trechos que subimos egatinhando agora estavam mais fáceis de descer, mesmo assim, sempre com bastante atenção.No retorno, o Rodrigo também contou mais sobre sua experiência e pioneirismo nas trilhas e travessias ali na região, alimentando nossa vontade de voltar.
A tarde do Sábado já chegava ao fim quando avistamos o Abrigo novamente, olhando para trás para nos despedir do Agulhas com as ótimas lembranças do que acabávamos de viver. Fizemos o último trecho na estrada larga de terra já sob a luz das estrelas e lanternas, chegando exaustos ao estacionamento.Nos despedimos do Rodrigo com bastante alegria, afinal foi um excelente guia. Planejamos fazer uma travessia ou o Pedra da Mina com ele em breve.
Com os corpos e músculos quase embalsamados, decidimos não dormir mais uma noite no camping, descemos até lá só para fazer o check-out, pegar as barracas e procurar um lugar em Penedo, cidade vizinha. Felizmente encontramos um lugar, um tanto estranho, porém se tornou um hotel 5 estrelas naquele momento. Dormimos um sono profundo, o melhor descanso que poderiamos ter.
No outro dia, todos acordaram renovados. O frio, a falta de sono, as estradas escoregadias, os grandes esforços físicos e mentais, experiências inesquecíveis, tudo havia valido a pena e completou esse passeio memorável.
Almoçamos na mesma cidade uma picanha sensacional, no restaurante Casa da Picanha. Altamente recomendado!
Espero que tenham gostado dessa aventura, até a próxima montanha!